Overtraining: Quando Mais é Demais

"Sinto-me em baixo"
Uma mulher de 38 anos queixa-se ao seu médico de que se "sente em baixo".

Após algumas perguntas ela relata que está com dificuldades de concentração no trabalho, irrita-se com facilidade e tem estado ansiosa. Atribui isso ao facto de não estar a dormir bem e à falta de apetite, o que a deixa mole e sem energia.

Diz que está a atravessar uma fase de desinteresse em sexo e culpa o namorado por não a conseguir cativar.

Qual será o problema ? Infecção viral ? Depressão ? Anemia ? Falta de vitaminas ?
Talvez nenhuma destas.

- "Faz desporto?", pergunta o médico. De repente, o olhar fica muito vivo e excitado. - "Claro! Não consigo viver sem as minhas aulas de RPM, faço todos os dias e até ao sábado!".
Humm... Relevante? Talvez.

O exercício de alta intensidade, quando efectuado sem tempo de recuperação adequado entre sessões, pode provocar alterações hormonais, do sistema imunológico e mesmo ao nível do sistema nervoso central. As manifestações destas perturbações não são apenas ao nível do decréscimo da performance física, mas também ao nível da função cardíaca, do sono e da energia, da performance cognitiva e intelectual. Surgem frequentemente perturbações de humor e imunológicas que são, no mínimo, indesejáveis.

O que é o "Overtraining" ?
O fenómeno do Overtraining (definição literal - treinar demais) não está completamente compreendido ou estudado, mas a grande parte das consequências observadas resulta de um processo inflamatório sistémico provocado pelo exercício intenso SEM períodos de descanso adequandos.

E o que o exercício tem a ver com processos inflamatórios? Tudo.

Quando treinamos um músculo, na prática o que provocamos são micro roturas musculares que o corpo depois ira reconstruir ficando mais forte e maior. Este processo de destruição/re-construção é na realidade um processo inflamatório. Sem deixar tempo suficiente para que o processo inflamatório tenha a sua fase de reparação, essa inflamação irá agudizar-se e provocar uma resposta generalizada do corpo através do sistema nervoso central - que afecta tudo.

Os Sinais de Overtraining
Apesar de afectar a performance desportiva, as pessoas "normais" (vs atletas treinados) poderão não sentir essa diferença porque, muito simplesmente, não medem a sua performance desportiva de uma forma sistemática. No entanto o Overtraining provoca outras reacções que podem e devem ser sentidas, nomeadamente a diferença entre Percepção Subjectiva de Esforço e a frequência cardíaca efectiva.

Ao treinarmos usando um cardio frequencímetro conseguimos medir a intensidade real do nosso esforço através da monitorização da frequência cardíaca.

Normalmente a nossa Percepção Subjetiva do Esforço que estamos a desenvolver é proporcional à medida real do cardio frequencímetro. Quando tal não acontece (e.g. sentimos estar perto do limite apesar do cardio-frequencímetro mostrar que ainda estamos a 70% desse limite - ou vice-versa) é porque outras variáveis estão na equação como desidratação, algumas drogas ou, adivinharam, "Overtraining".

Além da diferença entre percepção subjectiva de esforço e esforço real, existem outros problemas associados ao overtraining:
- Fadiga crónica e dores musculares
- Problemas de humor
- Distúrbios no sono
- Mudanças no apetite
- Infecções frequentes, sobretudo do aparelho respiratório

Como reconhecer quem está em risco de Overtraining ?
De uma forma genérica o overtraining é provocado pela falta continuada e repetida de recuperação adequada relativamente ao esforço produzido. No entanto "recuperação adequada" é algo que varia de indivíduo para indivíduo e até ao longo do tempo para o mesmo indivíduo.

Há risco acrescido de overtraining quando existem:
- Incrementos súbitos de volume ou intensidade de treino - Cuidado para quem nunca treinou ou já não o faz há muito tempo. Ajustem o volume e a intensidade de uma forma gradual. O risco é maior para quem sente necessidade de fazer em 3 meses o que não fez em 12.

- Frequência elevada de treino anaeróbico intervalado de alta intensidade (e.g. RPM) - O treino intervalado de alta intensidade pode ser extremamente intenso e exigente fisicamente. Se bem aproveitado os resultados são excelentes, mas modere o numero de vezes semanais que o faz e garante que recupera bem entre sessões. Não faça uma aula de treino intervalado se estiver cansado.

- Tempo de recuperação insuficiente entre sessões - Sabe-se que treinar o mesmo músculo com menos de 48 horas de descanso é um erro (para hipertrofia). Não deixar o corpo recuperar diminui a nossa capacidade de produzir esforço na sessão seguinte, seja esse esforço muscular ou cardio-vascular.

- Alimentação insuficiente - Ainda há atletas que usam a máxima "não existe treinar demais, existe comer de menos". Apesar de bastante redutora, esta frase encerra em si a lógica de que se a alimentação for de qualidade, variada e em quantidade suficiente, o corpo irá ter disponíveis os nutrientes que necessita para reconstruir o que destruímos durante cada treino.

No entanto esta máxima esquece o factor tempo - o corpo precisa de tempo para recuperar, não apenas dos nutrientes. Tenha especial atenção à depleção de glicogénio durante o treino, sendo aconselhável consumir hidratos de carbono de absorção rápida (e.g. fruta, sumo, bebida energética) logo a seguir à sessão de treino para repor as reservas de glicogénio gastas. É no final da sessão de treino que começamos a preparar a próxima sessão...

Como se trata o Overtraining ?
A forma mais eficaz de ultrapassar o overtraining é conseguir uma recuperação completa. Se tiver um ou mais dos sintomas descritos em cima e chegar à conclusão que está em overtraining - troque sempre impressões com PT experiente sobre o seu caso -, em vez de corrigir pontualmente uma ou outra situação, recomenda-se que pare completamente uma semana.

Tirar uma folga de 1 semana reverte a maioria dos sintomas descritos anteriormente e irá dar ao seu corpo o tempo necessário para voltar recuperado e mais forte.
Caso os sintomas se mantenham ao final de uma semana sem actividade física, dirija-se ao seu médico porque o problema poderá ter outras causas.

Se tiver questões sobre este ou outros temas do mundo do fitness, envie-me um email para ptg.miguel@gmail.com.

Kia Kaha!
Pedro Miguel.
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Referências Bibliográficas
1. Angeli A, Minetto M, Dovio A, Paccoti P. - The overtraining syndrome in athletes: A stress-related disorder. Journal of endocrinological investigation, 2004
2. Budgett R, Newsholme E, Lehmann M, Sharp C, Jones D, Jones T, Peto T, Collins D, Nerurkar R, White P. - Redefining the overtraining syndrome as the unexplained underperformance syndrome. British Journal of Sports Medicine, 2000
3. Budgett R. - Fatigue and underperformance in athletes: the overtraining syndrome. British Journal of Sports Medicine, 1998